Melancolia: uma visão psicanalítica

Até quando o excesso de posicionamento nas redes sociais pode ser benéfico?


O filme de 2011, Melancolia, da intitulada “trilogia da depressão” e dirigido pelo cineasta dinamarquês Lars Von Trier, traz uma mistura de drama e ficção científica, enquanto nos conta sobre duas irmãs — Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg) — com personalidades extremamente opostas, durante a aproximação do planeta Melancholia com o planeta Terra.

A obra se divide em dois arcos. O primeiro, intitulado “Justine”, nos mostra o casamento da personagem e como ela se sente deslocada daquele ritual, apresentando uma série de atitudes atípicas, como se atrasar para o casamento, priorizar o contato com os cavalos no estábulo ao invés dos convidados, sair para andar sozinha pela propriedade enquanto a festa ocorre e até mesmo se banhar momentos antes de cortar o bolo. Vemos que ela não consegue, de fato, uma aproximação afetiva com seu esposo, e acaba procurando refúgio e consolo na mãe, que, de certa forma, a desampara, tratando-a com frieza e rigidez.

O mesmo acontece com o seu pai. Justine encontra um bilhete raso e impessoal de despedida, direcionado à “Betty” — nome que ele usa com todas figuras femininas.

Em diversas vezes, Justine é cobrada a estar feliz.

São nestes momentos que temos um vislumbre da “verdadeira Justine”: uma mulher infeliz, com dificuldade de estabelecer vínculos afetivos com outros, e que nega a satisfação do desejo alheio ao permanecer infeliz; ou seja, quando lhe é solicitado que seja feliz, ela mantém-se melancólica.

A partir deste ponto, podemos hipotetizar que Justine também sofre de depressão. Talvez, para alguns, soe redundante afirmar que a personagem é depressiva e ao mesmo tempo melancólica. Porém, estas são duas coisas separadas, ainda que ambas sejam representadas pelo mesmo sintoma principal: o desinteresse no mundo exterior.

O conceito da palavra melancolia surge na Antiguidade como tema de estudos filosóficos, médicos e até mesmo inspiração para artistas e poetas. Mas é no século IV a.C. que Hipócrates estabelece o conceito como uma relação entre comportamentos físicos e comportamentos mentais. Em seu trabalho, A natureza do homem, ele divide o corpo humano em quatro humores, sendo eles: sangue, fleuma, bílis branca e bílis negra. A melancolia estaria relacionada diretamente a esta última, a bílis negra.

Mas o que é a melancolia para a psicanálise?

Ressalta-se que, para a psicanálise, a melancolia dá-se quando há uma falha narcísica na constituição do eu, ou seja, o indivíduo está fixado no narcisismo. A escolha do objeto de amor retorna ao narcisismo primário, fase na qual o bebê designa o seu objeto de amor a si mesmo, direcionando toda sua libido para si próprio e havendo uma ruptura de algum laço importante para ele.

Para Freud, a melancolia é uma espécie de luto que pode se dar de duas maneiras: reação à perda de um objeto amado, ou reação a uma perda idealizada de um objeto de amor que foi perdido. É, portanto, uma perda inconsciente, com a negação da realidade exterior, como vimos com alguns comportamentos de Justine.

Freud também escreve que deve haver uma predisposição patológica para que haja a melancolia:

“Entretanto, em algumas pessoas — que por isso suspeitamos portadoras de uma disposição patológica — sob as mesmas circunstâncias de perda, surge a melancolia, em vez do luto” (Freud, 1917[1915]/2006, p.103, mencionado por Mendes, 2014).

Então é possível que Justine seja melancólica e depressiva? A resposta é sim, é possível. A depressão é uma patologia que pode acontecer em qualquer estrutura psíquica, visto que Freud escreve sobre “estados depressivos”, segundo Delouya (2011 mencionado por Mendes, 2014).

O segundo arco leva o nome de “Claire”. E é a partir daqui que passamos a notar as mudanças nas personalidades de cada personagem.

O arco começa com o retorno de Justine à casa da irmã, em um estado de depressão profunda, e se desenrola com a aproximação do planeta Melancholia. Diante deste evento, cada personagem reage de uma forma específica.

Para John, esposo de Claire, o fenômeno se trata de um espetáculo científico belo e único, e ele nega veemente a provável colisão dos planetas, baseando-se em cálculos científicos. Frente à proximidade cada vez maior do planeta, Claire diz que é impossível calcular precisamente este tipo de acontecimento e que, com a margem de erro, é possível uma colisão.

Nota-se que John se agarra fielmente aos cálculos científicos como uma forma de mascarar sua angústia e medo. Quando é confrontado pela realidade, porém, esta se torna impossível de lidar, levando-o ao suicídio.

Claire — que até então havia se mostrado uma personagem mais controladora e que tenta contornar todos os obstáculos (por exemplo, ela é quem organiza o casamento da irmã e quem cuida desta durante seu estado depressivo) — , se vê desesperada e incapaz de lidar com a situação e a perspectiva da finitude e desamparo, frente ao fenômeno da colisão. Vemos aí uma inversão de papéis entre as irmãs.

Já para Justine, o fenômeno não a assusta e nem a deprime, e é como se a ideia do fim do mundo lhe trouxesse um certo conforto. É justamente ela quem confronta a ideia insana de Claire, que tenta normalizar o fenômeno e transformá-lo numa espécie de rito de passagem com um copo de vinho no pátio. Ela também é quem acolhe o sobrinho e encontra a solução da “cabana mágica” para tornar o momento mais “fácil”. Por fim, dentro desta cabana, é Justine que ampara ambos quando o planeta Melancholia de fato colide com a Terra.

O filme nos confronta diretamente com questões importantes como a solidão, o desamparo, a finitude e, é claro, a melancolia.

Porém, indo um pouquinho mais além, de certa forma é possível fazermos um paralelo com a situação mundial, marcada pela pandemia do Covid-19.O filme faz uso da ficção para ilustrar como um evento inesperado e atípico pode evocar as mais diferentes reações e, além disso, conflitos internos tão profundos que muitas vezes sequer sabíamos que existiam, e a maneira como cada um encontra ferramentas e recursos internos para conseguir lidar ou não com o ocorrido. Mesmo nove anos depois de seu lançamento, o filme consegue se adequar à realidade em que vivemos agora.

Assim como no filme, podemos observar as mais diversas reações que os indivíduos têm frente à pandemia e à quarentena: alguns, como Justine, aceitam a ideia de morrer e são relapsos com as medidas de higiene e cuidado pessoal e coletivo necessárias; já outros, como Claire, se desesperam, tentam tomar inúmeras precauções e se trancafiam em casa, deixando até mesmo de realizar atividades essenciais.

Aqui, portanto, exaltarei a importância terapia para nosso autoconhecimento e a compreensão de quais são os nossos limites, nossos conflitos, nossos recursos internos e mecanismos de defesa, de forma que seja possível olharmos a nós mesmos e aos outros numa perspectiva mais acolhedora.

Para finalizar, Freud, ao escrever sobre a melancolia, diz que “o melancólico dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são melancólicas” (Freud, 1974 [1915], p. 278 mencionado por Peyon, 2015).

Então, com base na afirmação de Justine, questiono: será que estamos todos, de fato, sozinhos?